Ontem levei minha filha em diversos parquinhos e me recordei de uma vivência minha que tem tudo a ver com a questão do comportamento alimentar! Inclusive, sempre uso a analogia do parquinho para explicar a permissão incondicional de comer!
Quando eu era pequena, eu era louca por parquinhos! O problema? Não tinha nenhum destes perto da minha casa. Então eu dependia dos meus pais me levarem quando eles tinham disponibilidade. Assim, sempre que eles podiam me levar, eu com certeza já entrava no clima e estava pronta pra brincar! Depois de um tempo, vejam a alegria: construíram uma pracinha do lado da minha casa!! Da minha janela, eu avistava a gangorra, o balanço, o escorregador... E aí você deve pensar: "nossa, que felicidade! Agora você ia todo os dias, né?" Não, não ia! Depois de um tempo, eu não tinha mais tanta vontade de ir todo dia ao parquinho. Ainda era legal e eu ainda gostava, mas agora que eu sempre podia ir, não ia sempre (minha mãe até reclamava!).
Esse efeito também se assemelha à síndrome da casa com piscina. Sabe aquele seu amigo que tinha piscina em casa e você pensava “nossa, se eu tivesse piscina iria todo dia?”, e, então, quando você passa a morar em uma casa com piscina você percebe que nem a usa tanto?
A verdade é que quando temos temos um acesso restrito a algo que gostamos, tal objeto passa a ser muito valorizado, como explicado pela Teoria do Fruto Proibido. Sim, o proibido, ou o inacessível, é, de fato, mais gostoso.
Mas o contrário também é verdadeiro: aquilo que temos acesso irrestrito passa a não ser mais tão atrativo (como no exemplo do parquinho), e a isso chamamos de habituação (ou seja, aquele objeto, ou aquele alimento, não me provoca mais tanta atração como antes).
O mesmo também acontece no nosso comportamento alimentar. Quando você vive tentando fazer proibições alimentares, sua vontade por aquele alimento proibido aumenta. E aí, quando você se dá a 'oportunidade' de comer tal alimento (o famoso "só hoje", que muitas vezes acaba acontecendo todo dia), você precisa aproveitar e comer muito, porque 'amanhã, eu volto pra dieta', isto é, volta a tentar restringir o alimento.
Observa-se o ciclo: → o alimento é categorizado como ruim e você tenta evitá-lo → ocorre aumento do desejo pelo alimento → o alimento acaba sendo consumido em algum momento porque a vontade é muito grande → manifestação da culpa → e aí você pensa ‘ah, só hoje’ ou ‘já que já estraguei a dieta, vou comer tudo’ e ocorre o consumo excessivo do alimento → restrição do alimento de novo (reinício do ciclo).
Por isso, diversas abordagens do comportamento alimentar, como a Intuitive Eating, trabalham a estratégia Permissão incondicional de comer, que aparece para promover a quebra deste ciclo formado entre proibição alimentar e compulsão. A permissão incondicional de comer implica na não restrição de nenhum tipo de alimento, a não ser ditada por alguma patologia específica, pois parte justamente do princípio que tanto a proibição faz você comer mais dos alimentos proibidos, quanto que o acesso irrestrito a estes alimentos traz a diminuição do desejo por eles.
Isso acontece por causa do fenômeno da habituação, que se refere à existente adaptação a objetos aos quais se há frequente exposição. Segundo Epstein (2009), a habituação alimentar conceitua-se como uma forma de aprendizado neurológico no qual a exposição ao mesmo alimento repetidamente leva a uma diminuição nas respostas comportamentais e biológicas. No estudo de Ernst (2002), por exemplo, observa-se esse efeito da habituação (diminuição da obsessão pelo alimento) com alimentos como pizza, chocolate e batatas chips, aos se expôr os participantes a tais. Alguns estudos também trabalharam a exposição repetida de pessoas com compulsão alimentar aos seus alimentos gatilhos e o resultado foi a diminuição da compulsão alimentar (Kristeller e Wolever, 2011; Smitham, 2008).
É importante acrescentar que a permissão incondicional de comer não significa comer tudo o tempo todo, mas sim comer com intenção e paz. Digo para minhas pacientes que a permissão incondicional de comer não é um ‘posso comer, então vou comer’, e sim um ‘eu posso comer de tudo, o que eu realmente quero comer agora?’, assim como questionamentos como ‘quero mesmo comer este chocolate agora, ou mais tarde?’, ‘o que realmente tenho vontade de comer’? E isto aliado ao aprender a degustar os alimentos e se conectar com os sinais de fome e saciedade.
Assim, quando você vive a permissão incondicional de comer, você passa a viver o mesmo efeito com os alimentos que eu vivi com a pracinha. Quando os alimentos estão permitidos, isso não me faz comer desesperadamente; na verdade, isso me dá a opção de me perguntar se eu quero ou não comer naquele momento, o quanto eu preciso pra me sentir saciada, se quero deixar para outro momento...
Além disso, para conseguir realmente vivenciar um cenário de permissão incondicional de comer, é necessário que o indivíduo para de julgar os alimentos como ruins ou bons. É necessário que os alimentos passem a ser vistos de maneira neutra, desmistificando a comum classificação entre saudável e não saudável, ou bom e ruim. Todos os alimentos são considerados alimentos, alguns com teor mais nutritivos, outro com menos, mas ainda alimentos. Assim, para conseguir recuperar uma relação de neutralidade com os alimentos, o indivíduo precisará se sujeitar a um processo de desconstrução, em que suas crenças sobre comida, sobre nutrientes e também sobre peso e corpo, possam ser constantemente questionadas e avaliadas. Este é um momento, por exemplo, que o trabalho de um nutricionista que tenha essa abordagem como base é extremamente valioso, pois o profissional poderá lhe ajudar a fazer as pazes com os alimentos e realmente entrar neste processo de habituação.
Eu sei que parece difícil de acreditar nisso. Você deve pensar que se você sempre puder comer chocolate, você não vai mais parar de comer. Mas eu também não acreditaria se antigamente alguém dissesse que se eu tivesse a pracinha do lado de casa eu não iria mais querer brincar tanto... Ou que eu não iria querer tanto ir na piscina quando tivesse acesso irrestrito a uma. Ou mesmo, quando eu vivia compulsão alimentar e acreditava que eu era chocólatra, que eu iria parar de querer tanto o chocolate no momento que eu parasse de proibí-lo. Mas acontece!
Deixo aqui ainda um vídeo do meu canal do Youtube (bastante antiguinho - nota-se pela minha cara! - mas muito preciso!):
Por Nathália Petry, nutricionista e escritora
www.nathaliapetrynutricionista.com
Livros que trabalham a Permissão Incondicional de Comer:


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Referências citadas no post:
Ernst MM. Habituation of responding for food in humans. Appetite. 2002; 38 : 224-234.
Kristeller JL e Wolever RQ. Mindfulness-based Eating Awareness Training for Treating Binge Eating Disorder: The Conceptual Foundation. Eating Disorder. 2011; 19(1): 49-61.
Smithan DA, Smith D, Haeffel G, Staples V, Corning A. Evaluating an Intuitive Eating Program for Binge Eating Disorder: A Benchmarking Study. South Bend. Tese [Doutorado em Psicologia] – University of Notre Dame, 2008.