"Eu preciso me cuidar mais..." Tudo sobre autocuidado e autocontrole na Saúde
No último domingo, participei de uma roda de conversas de mulheres que também são imigrantes aqui na Alemanha com o tema autocuidado. E sempre que surge o assunto autocuidado, acho curioso como a conversa logo se transforma em reclamações sobre não conseguir manter uma alimentação saudável, ir à academia ou manter a rotina de skincare. E isto me intriga, porque embora estas atitudes possam ser consideradas atos de autocuidado, é perceptível que elas têm tido o peso de uma obrigação, aumentando ainda mais a sobrecarga de trabalho (principalmente entre as mulheres). Elas dizem “eu preciso me cuidar mais”, mas o que estão na verdade dizendo é: “eu preciso me controlar mais, eu preciso fazer mais”.
Existe na nossa cultura uma confusão entre as palavras cuidado e controle. É nítido que ambas têm sido vistas como sinônimos, em que o “eu preciso me cuidar” é traduzido como “eu preciso controlar o peso, controlar o corpo, controlar a boca”. Mas o que é realmente cuidado? Eu busco me cuidar ou me controlar?
Cuidado vs. controle
“‘Quando a gente ama, é claro que a gente cuida.’ Não é “quando a gente ama, é claro que a gente controla.”
Trecho do livro Elas não querem (só) comida
Na nossa roda de conversa, uma das perguntas que discutimos foi “Qual a área da sua vida que você precisaria cuidar mais?”. E eu, que até pouco tempo atrás teria respondido “todas”, respondi: “nenhuma”. Eu, com uma alimentação longe da perfeita, uma rotina de skincare longe de consistente, uma rotina de exercícios imperfeita, percebi que estou me sentindo bem cuidada. Estou me alimentando, me exercitando e cuidando da minha pele dentro das minhas possibilidades imperfeitas, de maneira respeitosa. Estou cuidando de mim com momentos de aconchego e prazer. Estou cuidando de mim com apoio de profissional de saúde mental.
Estou cuidando de mim. E isso é bem diferente de estar “sob controle”, atingindo todas as rotinas perfeitas, o que é bem impossível.
Há algumas semanas, a jornalista americana Katherine Rowland postou uma matéria intitulada: “Estamos sedando as mulheres com autocuidado”. Segundo ela, cada vez precisamos fazer mais: uma rotina de exercícios, uma rotina de alimentação, uma rotina de suplementos, uma rotina de skincare… Ela inclusive cita uma fala de Derkatch da Toronto Metropolitan University:
“Tudo na linguagem do bem-estar é projetado para empurrar as metas cada vez mais para longe do nosso alcance”, diz ela. “Você nunca chega a um ponto onde pode dizer: ‘Ah, agora estou bem.’ Sempre há algo mais que poderíamos estar fazendo.”
E a verdade é que toda esta cultura não é sobre se cuidar, mas sim sobre se controlar, se “aperfeiçoar” (palavra bem apropriada, porque traduz a busca da perfeição”.
Porém, como diz aquela famosa música do Caetano Veloso, “Quando a gente ama, é claro que a gente cuida”. Pois é, não é “quando a gente ama, é claro que a gente controla, a gente aperfeiçoa” Mas qual é, afinal, a diferença entre se cuidar e se controlar?
As autoras brasileiras Marcela Villela e Elaine de Azevedo têm um artigo interessante que fala das diferenças entre cuidado e controle dentro das práticas de Saúde (indico fortemente a leitura para os nutricionistas!). Segundo elas, o controle remete a conformar, modelar, aperfeiçoar, padronizar, cercear. Elas trazem ainda uma fala bem indigesta:
“A principal estratégia de adestramento do corpo é a ação voltada para uma suposta liberdade, incentivando a população a se tornar mais produtiva e empreendedora de si, características essenciais para a docilização.”
Como disse a jornalista americana, estamos sedando as mulheres com essa pressão do autocuidado.
Mas, na verdade, como eu disse, a cultura não é propriamente sobre autocuidado. É sobre se controlar, padronizar, conformar. O cuidado tem outras definições. As pesquisadoras brasileiras colocam:
“A noção de cuidado é polissêmica. O termo em latim se assemelha a cura, expressando uma atitude de atenção, zelo, bom trato, preocupação, interesse pelo objeto ou pela pessoa amada.”
O que elas observam é que:
“Cuidar não é cercear e nem controlar, pelo contrário, é produzir potências para a cura. Para a produção dessas potências, o cuidado se estrutura a partir de alguns pontos chave, entre eles: a escuta, a fala, a empatia, o acolhimento, a confiança, o respeito e a autonomia.”
Dessa forma, enquanto o controle fala sobre se encaixar e se conformar, o cuidado fala sobre acolher, respeitar, ouvir, aceitar as imperfeições, confiar, promover carinho, dar autonomia. É isso que fazemos quando amamos alguém, não é mesmo?
E isso também se aplica para o autocuidado. O autocuidado fala sobre se olhar, perceber suas necessidades, se respeitar, se acolher, se ouvir, se acarinhar…
Crescemos aprendendo a nos julgar, criticar, cobrar e muitas vezes nos xingar, mas estas são práticas ligadas ao controle de si e não ao cuidado de si. O cuidado de si nos convida a nos olharmos com autocompaixão e buscarmos as atitudes citadas pelas autoras: se ouvir, se acolher, se respeitar.
Percebam ainda que a autocompaixão também está ligado ao amor próprio. Afinal, “Quando a gente ama, é claro que a gente cuida.” O amor próprio, apesar de ouvirmos sobre sua importância em discursos na internet, é pouco estimulado de verdade em nós. Afinal, desde que nascemos aprendemos a nos “conformar”, a seguir padrões, a nos ver como insuficientes, e a acreditarmos que só seremos bons o suficientes quando tivermos um trabalho perfeito, uma família perfeita, ou - principalmente no caso das mulheres - um corpo perfeito. Mas observem esta citação trazida pelas autoras:
O cuidado somente surge quando a existência de alguém tem importância para mim. Passo então a dedicar-me a ele; disponho-me a participar de seu destino, de suas buscas, se seus sofrimentos e de suas conquistas, enfim, de sua vida [...].
A gente cuida de quem a gente ama - mesmo que não seja perfeito (e nunca será!!!), inclusive nós mesmos. Como cuidar de mim mesma quando eu me sinto uma pessoa sem valor, quando sinto que meu corpo é insuficiente e não merecedor de cuidado? Precisamos urgentemente olhar para isto.
Como colocam ainda as autoras Brené Brown (autora de diversos livros, dentre eles A coragem de ser imperfeito, que estamos lendo no meu clube do livro) e Kristin Neff (autora do livro Autocompaixão), é importante que iniciemos um processo de fazer as pazes com quem somos.
Todos já nascemos suficientes e dignos de valor, merecedores de prazer e cuidado - independente do nosso trabalho ou aparência física, mas infelizmente tem sido cada vez mais raro que acreditemos nisso.
Controle vs. cuidado na prática
A forma como encaramos o autocuidado impacta o como nos comportamos. Vamos observar isto de maneira bem prática (conforme o que vejo com minhas alunas/ pacientes):
Na ótica do controle:
Eu estou insatisfeita com meu corpo e com minha alimentação (ou na verdade, estou insatisfeita comigo, com minha vida, com minha rotina) e penso: preciso me “cuidar”, me alimentar melhor, ir à academia.
Decido começar uma dieta e ir à academia.
Geralmente não consigo sustentar por muito tempo, porque muitas vezes escolho atos de controle que não são respeitosos comigo (uma dieta restritiva, ir à academia quando eu não gosto deste tipo de atividade).
Não consigo manter a dieta e a academia, me culpo e me xingo.
Na ótica do cuidado:
Acredito que preciso me cuidar mais, talvez por algum sintoma, por me perceber mais cansada ou indisposta, ou porque venho ganhando peso ou perdendo peso.
Me avalio com carinho, me observo e percebo que não estou tendo momentos de lazer, nem me exercitando, nem me alimentando de maneira variada.
Me acolho e analiso com carinho o que eu poderia fazer.
Se percebo que preciso me exercitar, busco observar quais exercícios podem me atrair. Será que tem algum tipo de atividade que pode me interessar? Ou será que percebo que sinto falta de companhia e posso chamar uma amiga para iniciarmos caminhadas junto?
Se percebo que não estou me alimentando de forma variada, me acolho e observo a situação para entender o problema e como achar soluções. Se a minha alimentação está sem cor, será que poderia comer mais frutas? Qual fruta eu gosto, e em que momento eu poderia inserir? Se eu não tenho tempo para cozinhar o meu almoço, será que posso buscar opções que facilitem este processo (como marmitas, ou alimentos já picados, etc).
Minha vida está tendo “cor” (ver seção abaixo)? Será que preciso de mais momentos de lazer? O que estou precisando? Descanso, carinho, conexão, diversão, e/ou ajuda profissional…
Percebem a diferença entre a ótica do controle e a do cuidado? A ótica do controle é dura, julgadora, fria, e que leva a atitudes não respeitosas com você mesma e insustentáveis. A ótica do cuidado é calorosa, respeitosa, acolhedora, que leva a você a ouvir você mesma e buscar atitudes que lhe façam sentir bem. A ótica do controle busca um perfeito inatingível, a ótica do cuidado busca o caminho possível e respeitoso para você mesma.
Para mim, como nutricionista, Saúde é isto. Inclusive, estou bem cercada de linhas teóricas que validam esta forma de pensar. Dentro da Nutrição Comportamental, por exemplo, área que eu atuo, temos a linha Health at Every Size (Saúde em Todos os Tamanhos) que diz:
“Na ótica da Saúde, faz muito mais sentido promover comportamentos alimentares e de exercício físico saudáveis e respeitosos de longo prazo independentemente do peso da pessoa! Existe um movimento que eu gosto muito, chamado Saúde em todos os tamanhos, que justamente promove a ideia de que todas as pessoas, independentemente de seus pesos, em primeiro lugar, merecem respeito e não devem ser julgadas, e, em segundo, podem já buscar saúde. Quero dizer, pessoas gordas não precisam emagrecer rapidamente primeiro para depois focar em ter uma rotina alimentar e de exercício respeitosa e prazerosa. Pessoas com todos os pesos já podem fazer isto - e merecem fazer isto! Este movimento também promove as noções sobre como alimentação saudável e exercício físico devem ser práticas prazerosas, respeitosas, flexíveis e factíveis com a realidade de cada pessoa. Precisamos quebrar esta ideia de que alimentação saudável e exercício físico devem ser chatos, pesados, questão de força de vontade e disciplina. Na verdade, ambos falam muito sobre prazer, sobre respeito.” - Trecho do livro Elas não querem (só) comida
Dessa forma, esta linha da Saúde promove que todas as pessoas, independentemente do seu peso ou formato de corpo, podem buscar comportamentos respeitosos de Saúde:
alimentação que seja saudável para o corpo e para a alma (sem dietas restritivas, sem passar forme, sem proibir alimentos importantes para a pessoa), em suficiência (respeitando os sinais de fome e saciedade)
exercício físico respeitoso e prazeroso, buscando-se atividades em que a pessoa possa ter mais afinidade ou buscando-se tornar o momento mais prazeroso (por exemplo, fazer uma caminhada ouvindo uma música que goste); e buscando-se uma rotina de exercícios que seja respeitosa (que não seja extenuante) e factível com a rotina da pessoa (às vezes, as pessoas acham que precisa ser todos os dias ou várias horas, e isso não é verdade! O importante é inserir movimento)
cuidado com saúde mental e prazer, buscando-se momentos de lazer, de diversão, de descanso, bem como apoio profissional, se necessário. Na próxima e última seção, falaremos sobre a importância do prazer.
Cor à nossa vida: a importância do prazer
Quando penso em momentos de autocuidado, eu penso também em prazer. Precisamos de prazer na nossa vida, daqueles momentos que nos dão força, que nos dão combustível. Eu digo que são aqueles momentos que dão cor à nossa vida. São aqueles momentos que deixam a vida mais gostosa e colorida.
Frequentemente, conversando com minhas alunas/pacientes, eu observo que elas não têm nenhum momento de prazer no dia a dia (sendo assim muitas vezes a comida a única fonte de prazer, levando aos exageros). Elas navegam pelo dia a dia, ocupadas em suas mil ocupações, se cobrando em buscarem rotinas de alimentação e exercício perfeitas (sem nunca conseguirem - e sem se darem conta de que essas rotinas são para a maioria das pessoas impossíveis) e ainda xingando por não serem boas o bastante. Mas onde está o prazer no meio disso tudo?
Ter momentos de prazer é importantíssimo e nem vou me ater aos benefícios que isso têm na saúde (inclusive a diminuição do comer emocional), porque não é sobre isso! É simplesmente para ser gostoso mesmo!
Fazer um café, pegar uma cobertinha e ler um livro; ou dar uma volta ouvindo uma música e pegando um sol; sair com uma amiga e rir até chorar; ir ao cinema com o namorado… Essas ações lhe dão um quentinho no coração? Talvez algumas sim e outras não, afinal o prazer é algo muito individual. Mas se algo lhe dá um quentinho no coração, uma cor na sua semana, é importante que você pense com carinho e inserí-lo no seu dia a dia.
Isto me lembra do que os dinarmaqueses chamam de Hygge, que é a arte de criar aconchego e bem estar para você mesmo. O hygge surgiu com a intenção de deixar as casas nórdicas mais aconchegantes durante o inverno, que é o período em que as pessoas passam mais tempo dentro de casa, mas foi se ampliando para uma atitude de prover e criar momentos de alegria e aconchego dentro de casa (e fora também).
Vale a pena descobrir o que te provoca esse quentinho no coração e inserir essas ações no seu dia a dia. Claro que ações com outras pessoas podem fazer parte (com amigas, com os filhos, com o parceiro), mas é importante também pensar em ações que são só suas, que são os seus momentos de recarregar.
Como diz Manoel de Barros, “A importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós.” O que te provoca encantamento? Para mim é dançar, ficar sozinha em casa em silêncio, ir para uma cafeteria com um livro… E estas são algumas das atitudes que eu preciso prover que aconteçam toda a semana para que a minha vida fique mais gostosa. E para você? O que te provoca encantamento e um quentinho no coração?
É claro que falo aqui de forma mais rasa. Muitas vezes o prazer some em rotinas regidas por sobrecarga e falta de qualidade de vida, e não é simplesmente inserir atos prazerosos que resolverá esta questão.
Como coloca a jornalista americana, “os determinantes sociais da saúde – fatores como qualidade do ar, segurança doméstica, apoio comunitário e acesso à educação – respondem por até 80% dos resultados de saúde. Mas essas realidades são cuidadosamente apagadas da maior parte do marketing de bem-estar”. É importante também nos levantarmos e questionarmos politicamente sobre aquilo que nos falta. É importante quebrarmos a sedação da busca interminável por perfeição e nos darmos conta que o problema não está em nós mesmas, mas nesta nossa cultura de perfeição, produtividade, controle e sedação. Mas isto fica para um outro post…
Meu intuito aqui nesta seção é te informar que o prazer não é um bônus, algo para quando dá tempo. Prazer/lazer é necessidade básica nossa!
Por fim, autocuidado é um tema que dá pano para a manga, e existem várias perspectivas a serem abordadas. Tentei contemplar as diversas nuances que abordo com as minhas alunas/pacientes e também na minha vida e terapia pessoal, e espero que esse apanhado possa te trazer mais clareza, leveza e prazer no seu dia a dia.
Por Nathália Petry, nutricionista e escritora.